Não é nova a questão da tributação dos parques eólicos em sede de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), nomeadamente no que diz respeito à avaliação e inscrição matricial dos componentes que compõe o parque eólico, não sendo também totalmente claro se o próprio parque deve ou não ser considerado e inscrito como prédio.
O longo debate jurisprudencial, longe de terminado, teve como causa a orientação divulgada pela Autoridade Tributária (AT) na Circular n.º 8/2013, de 4 de outubro, na qual se defendia que os componentes dos parques eólicos deveriam ser considerados prédios da categoria “outros” para efeitos de IMI, logo o edifício de comando, a subestação e cada aerogerador individualmente avaliados e inscritos na matriz predial.
Com efeito, a avaliação deveria ser efetuada de acordo com o “método do custo adicionado do valor do terreno”, nos termos do artigo 46.º, n.º 2 do Código de IMI, e considerados no seu cômputo o custo da fundação (ou sapata) e da “torre” (desconsiderando-se o custo da nacelle, rotor e pás – coloquialmente, a parte de cima dos aerogeradores – por serem “bens de equipamento”).
A validade e legalidade do entendimento sufragado pela AT na Circular n.º 8/2013, de 4 de outubro foi apreciada pelo Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 15 de março de 2017, que decidiu que os aerogeradores não podem ser considerados, individualmente, como prédio para efeitos de IMI, por não terem autonomia económica face à subestação e rede que integra os parques eólicos. Esta decisão foi replicada em vários acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, mas, mesmo tendo o Tribunal Superior dado inteira razão aos contribuintes, a questão da tributação dos parques eólicos ficou longe de se mostrar decidida, pois ficou por esclarecer a controversa consideração do valor de construção das torres para efeitos de avaliação dos parques eólicos em sede de IMI
Na sequência destas decisões judiciais, em março de 2021, pela AT foi emitida (nova) a Circular – Circular n.º 2/2021, de 3 de Março -, através da qual sancionou o entendimento de que os parques eólicos constituem prédios urbanos industriais para efeitos de IMI e que, por força do disposto nos artigos 38.º, n.º 3 e 4 do CIMI, em conjugação com a portaria n.º 11/2017, os parques eólicos devem ser avaliados de acordo com o “método do custo adicionado do valor do terreno”, nos termos do artigo 46.º, n.º 2 do CIMI. De acordo com o ponto 9. da referida circular, na avaliação dos Parques Eólicos para efeitos de IMI devem ser “tidas em conta as subestações, os edifícios de comando e as torres eólicas que compõem a central, bem como o terreno onde estejam implantadas estas construções. No que respeita à torre eólica, considera-se apenas a fundação (sapata em betão armado) e a torre (em aço ou betão), não sendo de considerar o conjunto pás, rotor e cabine (nacele)”.
O novo entendimento da AT continua, porém, ferido de manifesta ilegalidade e inconstitucionalidade, porquanto:
i) os parques eólicos não devem ser considerados prédios urbanos para efeitos de IMI.
Na tese de CARLOS BAPTISTA LOBO e FILIPE DE VASCONCELOS FERNANDES, defendida no artigo “A Tributação de Parques Eólicos em Sede de IMI”[1], os autores sustentam que um parque eólico não beneficia de utilidades urbanísticas, que legitimam a cobrança de IMI, desrespeitando, assim, o princípio da equivalência exigido para a tributação do património urbano[2]. Para os autores, o valor dos parques eólicos advém da energia que estes podem produzir, o mesmo será dizer do rendimento que podem gerar, e não de quaisquer utilidades urbanísticas de que estes aproveitam.
ii) a tributação dos parques eólicos em sede de IMI pode levar a uma dupla tributação.
Por um lado, em muitas situações, para além da tributação do parque eólico verifica-se, em simultâneo, a tributação dos prédios rústicos nos quais aqueles parques se instalam e por outro, o rendimento gerado pelas torres, elementos essenciais dos parques e dirigidas à produção energética, já são tributados, quer em IRC, quer em sede da contribuição especial de 2,5% sobre a receita dos parques eólicos, prevista no n.º 33 do Anexo II do Decreto-Lei n.º 189/88, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 339-C/2001, de 29 de Dezembro, tributo que reverte para os municípios e que tem a mesma função que o IMI teria se considerasse a natureza dos parques eólicos como prédios de rendimento (tal como os prédios rústicos), prejudicando assim a pretensão de cobrança de IMI.
iii) as torres eólicas (à semelhança do rotor, das pás e da cabine (nacelle)) são meros equipamentos, pelo que não devem ser consideradas na sua avaliação e, por conseguinte, no apuramento do VPT do prédio[3].
As torres são parte do aerogerador, não tendo qualquer autonomia perante as restantes componentes do equipamento. As torres são desenhadas em função do tipo de aerogerador a ser instalado, e são orientadas à produção energética, sendo compostas por um conjunto de secções circulares ligadas umas às outras, normalmente desenhadas, produzidas, compradas e transportadas para os parques em conjunto com os restantes componentes dos aerogeradores (excetuando a sapata, que tem caráter de permanência). Normalmente, no final da vida útil do aerogerador, as torres são desmontadas e, em conjunto com os restantes elementos móveis do aerogerador, enviadas para reciclagem.
Assim, tratar os demais componentes do aerogerador (nomeadamente, as pás, o rotor e nacelle) de uma forma e as torres de outra cria uma diferença artificial na avaliação do prédio, que resulta num aumento exorbitante do VPT dos parques. Todos os componentes dos aerogeradores (pás, rotor, nacelle e torre) apresentam natureza móvel, e tributá-los como património extrapola o âmbito do IMI.
iv) tributar as torres em sede de IMI, para além de extrapolar o âmbito deste imposto, constitui uma tributação indireta do rendimento, violadora do princípio da igualdade e da tributação do rendimento real, plasmados no artigo 104, n.ºs 2 e 3 da constituição.
Não há razão para tributar a indústria de produção de energia eólica sobre os seus bens de exploração, quando não existe imposto semelhante para as restantes indústrias. Pelo contrário, é um atentado contra a desejada política de transição energética para uma maior sustentabilidade ambiental.
Este (novo) entendimento da AT é também violador do princípio da legalidade por dois motivos. Em primeiro lugar porque a norma que prevê que os parques eólicos devem ser tributados de acordo com o referido “método do custo” provém de portaria do governo, contrariando a exigência de lei parlamentar (ou Decreto-Lei autorizado) para a fixação das normas de incidência dos impostos. Em segundo lugar porque o próprio método do custo não se encontra devidamente concretizado na lei, o que não garante a necessária tipicidade da lei fiscal.
v) a AT não fundamenta a opção pelo método de avaliação subsidiário em detrimento do método de avaliação geral.
Nos termos do artigo 38.º, n.º 3, a aplicação do “método do custo adicionado do valor do terreno” na avaliação exige a demonstração por parte da AT, da desadequação do método geral previsto no n.º 1 daquele artigo, algo que a AT tem desconsiderado em larga medida, passando de imediato para a aplicação do método do artigo 46.º, n.º 2. Tal modus operandi decorre do entendimento vertido na Circular n.º 2/2021, apesar de não haver nesta qualquer justificação para a desadequação do método geral, sem ser a referida portaria do governo que, como vimos, não pode servir como norma de incidência objetiva de um imposto.
vi) quanto à forma como o “método do custo adicionado do valor do terreno” é aplicado na tributação dos parques eólicos.
Para além de calcular os valores de construção recorrendo a preços médios e atualizados dos materiais, tendo em total desconsideração as datas e os custos efetivos da construção dos parques e dos seus componentes, a AT tem acrescentado aos valores de construção custos indiretos, no valor de 10% (!!!), sem qualquer justificação, mas com fundamento único em “presunções” que não têm qualquer base ou suporte legal. A AT tem também (apesar de considerar desadequado o método geral de avaliação previsto no CIMI) utilizado parcialmente este método, nomeadamente no que diz respeito à depreciação das construções (incluindo as torres). Não há razão para considerar que as torres eólicas têm uma vida útil de 60 anos e um valor residual de 40% do seu custo de construção, mas é o que a AT faz, aplicando a tabela do artigo 44.º do CIMI: o chamado “coeficiente de vetustez”.
Em suma, a verdade é que, a forma como a AT tem procedido à avaliação dos parques eólicos mune os contribuintes de armas suficientes para reagir, e é o que estes têm feito, procurando obter reduções substanciais do IMI a pagar. De acordo com um artigo do Expresso publicado em 14 de julho de 2023, corriam processos de impugnação das segundas avaliações de parques eólicos, nos Tribunais Administrativos e Fiscais, num valor superior a 110 Milhões de Euros (correspondente ao VPT sobre o qual incide o IMI). Este valor é, certamente, muito superior no dia de hoje, tendo em conta que a AT continuou, desde então, a reavaliar os parques eólicos de acordo com o “novo”, ilegal e inconstitucional entendimento.
[1] Artigo publicado em “Fiscalidade da Energia”, coordenação de Sérgio Vasques, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 32 e ss.
[2] Contrariando a exigência prevista no artigo 64.º, n.º 1 da Lei n.º 31/2014, Lei de bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo, , de 30 de Maio, que prescreve: “A tributação do património imobiliário urbano respeita o princípio da equivalência ou do benefício, atendendo ao investimento realizado em habitação com fins sociais, infraestruturas territoriais, equipamentos de utilização coletiva, ações de regeneração e reabilitação urbana, preservação e qualificação ambientais, que beneficiem o desenvolvimento socioeconómico das populações, nos termos da Constituição e da lei”. Bom de ver que os parques eólicos não beneficiam, nem de forma reflexa, das utilidades a que este preceito se refere.
[3] Isto é muito relevante, tendo em conta que, em muitos casos, o custo de construção da torre calculado pela AT ultrapassa 90% do valor dos parques.