Reflexão sobre a crise que se antecipa e o aumento inerente de ações executivas – Análise do art.º 738.º

Desde 2020, o mundo tem sido fustigado por ocorrências, em nada abonatórias para uma sociedade operacional e produtiva.  A crise pandémica da Covid-19, o conflito bélico na Ucrânia, a inflação abrupta, a subida dos juros, os preços exorbitantes da habitação e a expressiva queda da taxa de poupança dos portugueses, recorda-se que em Setembro de 2022, a taxa de poupança das famílias caiu para um mínimo histórico de 0,24%, que corresponde, à data, ao valor mais baixo de sempre entre as famílias portuguesas. Todos aqueles eventos têm vindo a contaminar nocivamente a economia, debilitando, desta forma, o investimento das empresas e o rendimento das famílias. Paralelamente, segundo o INE tem-se registado uma diminuição das exportações, existindo também indícios de perda de quota de mercado das exportações portuguesas para os três principais mercados de destino Espanha, França e Alemanha, e por outro lado também se tem verificado uma diminuição do poder de compra dos portugueses, provocando a estagnação da economia. Atendendo a todos estes fatores antevê-se uma crise social e económica no nosso país.  

Esta possibilidade, ou melhor, quase probabilidade de recessão económica é uma preocupação dos governantes. Os últimos Orçamentos de Estado expressam essa inquietação, pois verificamos a preconização das mais variadas medidas de forma a mitigar os riscos e perigos da iminente crise.

Face a esta nova conjuntura económica, a Lei n.º 12/2022, de 27 de junho (Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2022) introduziu alterações a diversos normativos legais, sendo uma delas ao Código de Processo Civil (doravante CPC), mais concretamente, ao artigo 738.º.

As crises económicas levam, naturalmente, ao aumento do número de ações executivas intentadas. Nestes períodos, é comum observar-se famílias e empresas com dificuldades financeiras excecionais provocando um aumento do endividamento e inadimplência, o que se traduz no não pagamento das suas obrigações nos prazos previstos. Este cenário conduz a um inevitável aumento de novos processos judiciais executivos para cobrança de dívidas.

Como pelo incumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptiveis de penhora, na ação executiva para pagamento de quantia certa, já se encontrava previsto, além da penhora de outros bens, a penhora do rendimento do executado e o seu regime de penhorabilidade parcial (art. 738º e 779º do CPC). No entanto, o legislador considerou necessário esclarecer e regulamentar, passo a passo, a concretização da penhora do rendimento do executado, enquanto prestador de serviços (atividades previstas na tabela a que se refere o art.151º do CIRS) e as inerentes consequências do seu incumprimento para a entidade pagadora, e para tanto, alterou a redação do art. 738º do CPC, nessa parte.

Ora, o artigo 738.º do CPC preceitua o regime da penhorabilidade parcial de bens, o que significa em termos muito gerais que, só e apenas, um terço do vencimento líquido do executado (devedor) pode ser penhorado para satisfação do crédito do exequente (credor). Todavia, após deduzido o valor a penhorar, não pode o executado (devedor) auferir um vencimento inferior ao salário mínimo nacional.

No entanto, para os prestadores de serviços esse limite máximo e mínimo da impenhorabilidade é, agora, apurado globalmente, para cada mês, pela entidade que os deva pagar.

As alterações aos números 8 e 9 do artigo acima mencionado como se disse vêm vincular e responsabilizar as entidades pagadoras dos rendimentos, agilizando o processo executivo. Estas estão obrigadas a (i) averiguar o limite máximo e mínimo da impenhorabilidade para cada mês e a (ii) comunicar previamente ao agente de execução (entidade responsável pela condução do processo executivo) o valor apurado. E com base nas informações fornecidas pela entidade empregadora, o agente de execução confirmará o valor final.

É, ainda, de referir que com a nova redação do n.º 9, as entidades pagadoras poderão ser diretamente executadas e penhoradas caso não entreguem no processo executivo o valor mensal a retirar do vencimento do executado (devedor) ou caso não comuniquem o valor apurado ao agente de execução, pois passam a assumir a qualidade de infiel depositário do valor penhorado (mas não entregue), à semelhança, do que já sucede para as entidades patronais.

Com estas alterações a entidades pagadoras passarão a ser peças-chave na agilização da penhora do rendimento do devedor, assumindo um papel ativo na sua concretização. No entanto, todos estes procedimentos poderão implicar um acréscimo de despesa para as empresas, uma vez que acarretará um maior esforço/labor por parte dos seus recursos humanos de forma a operacionalizar estas etapas, de cariz mensal, do processo de execução. Exigirá um comportamento responsável e diligente por parte das empresas, para evitar atrasos na entrega dos valores penhorados e as inerentes consequências legais.  

Por fim, a lei que contempla as alterações aqui abordadas ao de leve, foi publicada em 27 de junho de 2022, começando a produzir efeitos 12 meses após a sua publicação, ou seja, no pretérito, dia 27 de junho de 2023.

Atualmente, as entidades pagadoras terão necessariamente de ter uma especial atenção aos trâmites legalmente exigidos relativos à penhorabilidade de parte do salário líquido não só dos seus trabalhadores, como também dos seus prestadores de serviços, calculando o valor mês a mês e informando o agente de execução do montante total apurado.

Resumidamente, esta alteração visa garantir a satisfação do crédito do exequente (credor) através da penhora do rendimento do executado (devedor), delegando na entidade pagadora uma responsabilidade acrescida pela agilização do pagamento do valor mensal apurado e consequências penosas, em caso de incumprimento.

Inês Machado

Advogada Estagiária