A ditadura dos resultados dos testes de ADN no apuramento da verdade biológica
A família é considerada o núcleo vital da sociedade. É responsável pela transmissão de valores e normas que guiam o comportamento humano. A sua importância é unanimemente reconhecida por todos, pelo que desde cedo existiu a necessidade de a proteger e regular aos olhos da lei.
Na nossa lei o direito a constituir família está consagrado no artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa, onde se assegura que a todos os cidadãos, é reconhecido o direito a estabelecer os correspondentes laços de filiação de acordo com a verdade biológica e se proíbe a discriminação dos filhos nascidos fora do casamento.
Desta forma, o legislador constitucional quis proteger a instituição “família” reconhecendo-lhe a importância no desenvolvimento equilibrado da sociedade portuguesa, definindo os valores orientadores de uma parentalidade sadia.
Extrai-se, tanto da Constituição como de outros diplomas legais, que “toda a gente tem que ter um pai e uma mãe”.
Veja-se que sempre que seja registado na Conservatória o nascimento de menor, mas não seja conhecido o nome do pai ou da mãe, há obrigatoriamente comunicação ao Ministério Público para que este proceda à averiguação da identidade do progenitor em causa. Contudo, se tal não for possível, o caso acaba por ser arquivado. (cfr. os artigos 1864.º e seguintes do Código Civil). Este mecanismo jurídico foi implementado com o intuito de proteger a regulação legal da filiação e de diminuir os índices de incerteza da paternidade e maternidade, esta embora mais rara, intrinsecamente associados à desigualdade de estatuto jurídico e social entre os filhos nascidos dentro ou fora do casamento.
No que toca à atribuição da paternidade, a lei portuguesa prevê duas possibilidades: a forma voluntária ou por decisão judicial. O reconhecimento voluntário da paternidade pode ser feito por declaração ou pela perfilhação: o indivíduo identifica-se livremente como pai para efeito de preenchimento da identidade dos progenitores no registo de nascimento. Por seu turno, a atribuição da paternidade ou da maternidade também pode ser de forma involuntária, estando sujeita a uma decisão judicial. Neste caso, o estabelecimento da paternidade decorre de um processo judicial desencadeado para a investigar, uma vez que no registo de nascimento da criança não consta o nome do pai. Para este efeito, os tribunais recorrem à realização de testes genéticos, mais especificamente, teste de ADN.
Ora, estas ações judiciais de investigação têm como escopo a atribuição jurídica da paternidade da criança ao progenitor biológico e, quase sempre, tal é alcançado através do recurso à tecnologia do ADN. Aliás, encontramos poucos processos em que o juiz chega a uma sentença sem recorrer ao teste de ADN.
Desta forma, a jurisprudência portuguesa tem como assente que estes testes feitos através da recolha de sangue ou saliva equivalem a uma prova plena, do ponto de vista científico, no que concerne à filiação biológica (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.05.2020), pelo que as decisões judiciais não contrariam os resultados obtidos através dos testes de ADN.
Hodiernamente, a prova biológica (testes de ADN) é considerada a “prova rainha” nos processos de investigação da paternidade, pois acredita-se que faz prova cabal da filiação e que desvenda a verdade biológica sem qualquer margem de erro!
Posto isto, resulta evidente que a jurisprudência portuguesa na busca da verdade biológica hipervaloriza o significado da função dos genes na construção da identidade pessoal e social de um indivíduo. Aliás, os resultados destes testes ditam quase sempre os termos em que a sentença é proferida.
Perante esta confiança cega na prova genética por parte dos tribunais, coloca-se a seguinte questão: será que estes testes de paternidade (testes de ADN) garantem a fiabilidade dos resultados?
Esta problemática já foi alvo de estudo e investigação por diversos académicos de diferentes áreas, tendo-se destacado o professor catedrático António Amorim da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto que explica que a genética forense tem por base probabilidades e que o parentesco é aferido através do cálculo da probabilidade da ocorrência, por exemplo, ser ou não ser pai biológico de determinada criança, em contraposição à probabilidade da hipótese de não paternidade.
Ora, os tribunais entendem que os exames genéticos comprovam a existência de laços biológicos entre indivíduos com uma margem de erro supostamente muito baixa, conseguindo confirmar com graus de certeza que podem atingir os 99,9%. Todavia, estas sedutoras percentagens calculam probabilidades, pelo que existe sempre uma margem de erro que pode descredibilizar todo o teste de ADN realizado.
O supracitado professor catedrático publicou um artigo científico em que conclui a perícia genética tem fundamentos teóricos e técnicos muito exigentes, mas falíveis na sua aplicação concreta, “assim, quando deparamos com uma observação que contradiz na aparência o parentesco em causa (fenómeno infeliz, mas vulgarmente conhecido por ‘exclusão’ de paternidade), não sabemos, na verdade, se essa incompatibilidade resulta realmente da falsidade do parentesco ou da desadequação do modelo formal aplicado.”[1]
É inegável os inúmeros contributos da tecnologia genética na averiguação da paternidade, porém, os seus resultados dos testes de ADN não podem ser considerados VERDADES ABSOLUTAS!
Conforme já supra explicado, nas ações de investigação da paternidade impera, até aos dias de hoje, a prevalência da prova genética face aos restantes meios probatórios sustentada pela crença dos tribunais portugueses que se trata de testes infalíveis. No entanto, estes leigos em genética forense (magistrados, advogados, cidadãos em geral) não possuem a sensibilidade nem o know-how para interpretarem um resultado que exclua o parentesco, não sabendo na verdade se essa incompatibilidade resulta da falsidade do parentesco ou da desadequação do modelo formal aplicado.
O recurso à genética e aos avanços tecnológicos como forma de resolução de conflitos judiciais é uma boa prática, contudo não pode ser utilizada para acentuar a incerteza e as más decisões, pois como disse o professor António Amorim, os tribunais não podem aceitar a prova genética como uma insondável leitura de sina.
Todavia, esta limitação da prova genética não é reconhecida nem tida em conta pelos tribunais portugueses, pois quando se apresenta um resultado de exclusão da paternidade em absoluto, tal não é sequer questionado pelo juiz, o que deveria ser, dado que tal é cientificamente falacioso. Veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2020 (disponível em www.dgsi.pt) que afirma “É certo que os peritos em audiência de julgamento reconheceram que o resultado de um exame de exclusão da paternidade não é, em abstrato, absoluto (…)”.
Por forma a evitar as nefastas consequências de uma decisão judicial de não atribuição da paternidade, com base nos resultados dos testes de DNA, dever-se-iam desenvolver procedimentos que garantissem uma melhor fiabilidade daqueles resultados. Os tribunais podiam, por exemplo, ordenar a realização de exames aos progenitores imediatos, na escala ascendente (avós e bisavós do investigado) com o objetivo de procurar neles a existência de fatores recessivos, pelo menos até à sexta geração, para sustentar a solidez do resultado de exclusão da paternidade.
Estas limitações da prova genética não podem ser ignoradas pelos tribunais, pois a sua decisão condicionará, de forma severa, a relação de parentesco entre o pretenso pai e o pretenso filho e os direitos e deveres daí advindos.
Em suma, o Estado Português sempre reconheceu a elevada importância da família, pelo que a lei portuguesa consagra a obrigatoriedade da determinação legal de quem é o pai de determinada criança, justificado pela garantia do seu direito à educação, à sua subsistência, ao recebimento de cuidados diários e à supervisão de dois adultos, o que pode ser posto em causa por um resultado de teste de ADN, que enquanto prova positiva é apenas probabilística. Ou pior, pode ter o efeito indesejado da figura do filho de pai incógnito e a um julgamento e devassa da moralidade da mãe em praça pública.
[1] António Amorim e Cíntia Alves, Genética: Uma introdução à sua aplicação na investigação de parentescos, Universidade do Minho, Centro de Investigação em Ciências Sociais, Edição Hummus, Lda., 2013.