A Diretiva 2019/1023, transposta para o ordenamento jurídico português através da Lei 9/2022 de 11 de janeiro[1], brindou-nos com duas alterações significativas no que respeita o período de cessão na exoneração do passivo restante. A exoneração do passivo restante é um incidente que ocorre na insolvência e que permite ao devedor um “fresh start”. Para que o devedor possa beneficiar deste privilégio, é necessário que decorra o período de cessão, onde o mesmo ficará submetido ao cumprimento de determinadas obrigações, fixadas pelo tribunal, sendo a primordial obrigação a de ceder o rendimento disponível e entrega do mesmo ao fiduciário quando este seja recebido diretamente pelo devedor.
O período inicialmente fixado para a cessão era de cinco anos, tendo a mencionada diretiva reduzido o mesmo para um máximo de três anos. Esta redução aplica-se imediatamente a processos em curso à data da entrada em vigor da Lei 9/2022 de 11 de janeiro[2], bem como, a processos onde se verificasse já ter decorrido o período de três anos, considerando-se os mesmos findos a contar da data de entrada em vigor da mesma Lei.
A prorrogação do período da cessão, foi uma outra alteração introduzida e que se traduz numa verdadeira inovação, pois o período que foi encurtado para três anos, poderá, em abstrato, vir a ser alongado até seis anos.
Da leitura do artigo 242.º-A aditado ao CIRE, extrai-se que esta possibilidade de prorrogação só pode ser usada uma única vez. Tal prorrogação só será admitida se o devedor insolvente viole alguma das obrigações que lhe haviam sido impostas na sequência do despacho inicial, importando a frustração ou prejuízo da satisfação dos créditos sobre a insolvência.
De notar, que contrariamente ao que se verifica num plano de insolvência onde o devedor se se obriga a proporcionar aos credores determinado resultado, em sede da exoneração do passivo restante apenas existe a obrigatoriedade de o devedor ceder o rendimento disponível, caso este exista. Não constitui, por isso, impedimento à concessão da exoneração a impossibilidade de o devedor entregar o rendimento disponível, quer na hipótese de não o haver, quer na hipótese de este se ter perdido no decurso do período de cessão. Isto, porque o objetivo primordial da exoneração encontra a sua génese na recuperação e reabilitação do devedor.
A questão verdadeiramente controversa que surge com a prorrogação do período de cessão é: deverá a mesma ser entendida como um benefício ao devedor? Ou, por outro lado, deverá vista como uma forma de castigar quem incumpriu os deveres a que se encontra adstrito?
E será consoante a resposta à questão suscitada que recairá a decisão da prorrogação do período de cessão e em que termos deverá esta ser operada, relativamente às obrigações a cumprir pelo devedor durante esse mesmo período suplementar.
Verificam-se, assim duas teses quanto à mencionada questão.
Por um lado, encontrando-se a génese da prorrogação do período num incumprimento do devedor, esta possível extensão não poderá ser vista de outra forma que não como um efeito punitivo do incumprimento.
Por outro, tendo em consideração as disposições previstas nos artigos 243.º e 244.º do CIRE o que resultaria da conduta violadora do devedor seria a recusa pelo tribunal da exoneração do passivo restante ou a sua cessação antecipada. Ora, com a possibilidade da prorrogação do período de cessão, o tribunal já não terá de inelutavelmente indeferir a exoneração do passivo restante, permitindo-se ao devedor uma última oportunidade de ter acesso a este benefício. Isto é reforçado pelo facto de se ter reconhecido ao próprio devedor legitimidade para requerer a prorrogação.
No que respeita os moldes em que prorrogação irá vigorar verifica-se também a existência de duas teses distintas.
Parte da doutrina entende que a decisão em causa não deverá encontrar o seu limite na obrigação de o devedor ceder o rendimento disponível pelo prazo de prorrogação que vier a ser fixado, devendo acrescer à mesma a determinação do pagamento das obrigações incumpridas durante o período inicialmente estipulado. Em outras palavras, deverá o devedor, em simultâneo, ceder o rendimento disponível durante o período de prorrogação e ainda proceder à entrega dos valores que devia, mas deixou de entregar.
Numa diferente perspetiva, entende-se que o juiz após analisar as circunstâncias em que se deu o incumprimento das obrigações a que o devedor se encontrava adstrito, deverá fixar um novo período até um máximo de três anos. Durante este período o devedor deverá continuar a ceder os rendimentos disponíveis, mas não deverá cumular esta obrigação com a de entrega dos valores que deviam ter sido entregues.
Esta perspetiva é, a nosso ver, a mais correta e bem, uma vez que vai de encontro à mais recente jurisprudência, não só pela interpretação literal que resulta da expressão “prorrogação”, mas também pela exigência de que o tribunal se convença da “probabilidade séria de cumprimento” e ainda pela circunstância de o benefício da exoneração ser concedido independentemente do grau de satisfação dos créditos.
Numa nota final, o incidente da exoneração do passivo restante encontra a sua base e objetivo final num processo que permita ao devedor um eficiente perdão das suas dívidas e uma possivel reintegração na vida económica, e é tendo em conta esta ótica que de deve ser interpretada a lei que o regula.
[1] Que alterou a redação dos artigos 9.º, 17.º-C a 17.º-J, 18.º, 24.º, 38.º, 39.º, 48.º, 49.º, 55.º, 62.º, 88.º, 119.º, 128.º, 136.º, 150.º, 158.º, 164.º, 167.º, 169.º, 178.º, 182.º, 186.º, 188.º, 189.º, 195.º, 212.º, 217.º, 222.º-C a 222.º-G, 222.º-I, 222.º-J, 230.º, 235.º, 237.º, 239.º, 241.º, 243.º, 244.º e 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e aditou os artigos 47.º-A, 241.º-A, 242.º-A e 248.º-A ao mesmo Código.
[2] 11.04.2022.